Tinham sido dias cansativos.
Todos aqueles trabalhos, resenhas e resenhas a serem entregues, projeto de biologia, fora o forno alternativo que o professor de Física havia inventado de última hora para a semana de ciência. Era o sonho dela estar ali, foram horas, ou o que dirá um ano de estudos para passar para o tão sonhado colégio. Já antes mesmo de iniciarem os primeiros dias, tudo já estava planejado.
Onde sentar, o que levar para comer na hora do lanche, as músicas no mp3, o fichário com as colagens das fotos das férias em Salvador, a agenda comprada um ano antes, enfim, tudo planejado para o sonhado mundo do Segundo Grau. Parecia perfeito. Dessa vez prometera para si mesma que seria. Havia mudado.
Não seria mais a menina de aparelho nos dentes e cabelos desgrenhados sempre isolada e perseguida pelas coleguinhas de turma. Pintara o cabelo e alisara-o, trocara a armação da lente, tinha que acreditar que o estilo cult podia chamar atenção de alguma forma. Emagrecera o tanto quanto pode, embora nunca achasse que fosse o suficiente.
Tinha comprado sapatilhas novas. Combinavam perfeitamente com a saia plissada azul que assim como as outras garotas cool da sua turma, faziam questão de colocá-la sempre mais acima onde, o que gerava sempre um puxão de orelha da inspetora na entrada. O sutiã de enchimento fazia parte do plano também. Havia mudado.
E se fosse preciso para isso desvincular a imagem de menina estudiosa e responsável para experimentar a liberdade de por algumas horas ser a desregrada e popular, daquelas que sentam no fundo da sala, que desafiam os professores ou qualquer um que se colocasse a prova de sua pseudo-rebeldia, faria o que fosse preciso. Isso é claro incluía cordões de cheiro no banheiro, matar aulas no bar da frente do colégio e obviamente, colar nas prova de francês.
A nova escola a tinha apresentado não somente um novo mundo dentro de si, mas universos antes inimagináveis a serem explorados para aquela garotinha curiosa. O curso de filosofia nas segundas, o grupo de teatro as terças, o grêmio e as dezenas de passeatas a serem organizadas, os luais nas sextas, a viagem a Ouro Preto, o passeio a Paraty. Havia mudado. Ou o mundo que resolvera mudar?
Todos os horários organizados e preenchidos por dezenas de compromissos, reuniões de grupo, passeios...Sentia-se completa? Tudo parecia por deveras um clichê de vida perfeita que sempre pedia ao assoprar velinhas de aniversários ou mesmo nas viradas de anos, quando sempre pedimos aquilo que sabemos que não acontecerão, mas que os fazemos pelo simples deleite da ilusão momentânea de senti-los realizáveis.
Tudo parecia fluir. Não sentia falta de nada. Mesmo?
Sentada uma tarde na biblioteca, observara a presença de um novo personagem no seu conto de fadas. Discreto, pedira ajuda a bibliotecária para encontrar os contos de Kafka. Como não o havia notado antes? Mais alto que ela, cabelos negros e lisos, mas que por certo não viam o poder de um pente já fazia certo tempo. Pendiam até os ombros. Magro, pele mais alva que a sua, por certo fazia parte de algum grupo de RPG ou quem sabe do grupo de estudos de astonomia. O que a chamara atenção logo de primeira, fora os olhos. Eram doces. De uma doçura que acompanhava o sorriso suave e tímido que escapara ao agradecer a bibliotecária por encontrar não um, mas a coleção inteira de Kafka. Queria poder chegar mais perto somente para entender o que aqueles olhos guardavam em segredo, que o óculos e a franja a impedia de descobrir.
Tinha planos agora. Tinha que descobrir quem era o garoto tímido da biblioteca que a chamara tanta atenção. Esperou sair da biblioteca e correu em direção a porta para saber onde poderia estar indo. Não sabia seu nome, sua série, tampouco seus gostos. Mas alguma coisa agora havia mudado. E embora fosse todo o seu oposto, tudo aquilo que ela sempre fugira de si mesmo, que deixara para trás; os cabelos desgranhados, os óculos tortos, o jeito tímido e imperceptível de ser, era o que mais queria para si naquele momento.
Depois de passar a noite a imaginar o que aquele menino que absolutamente não conhecia nada, poderia representar na sua nova vida, acordou atrasada. Deixou a mochila pronta e correu para o colégio. Cinco horas sentada na biblioteca. Já sentia as dores do amor nas costas, nos ombros que esperavam um sinal de vida do rapazinho dos olhos que brilhavam longe.
3 dias e nada.
Mais uma vez aquela vozinha que amaldiçoava seus sonhos e exterminava qualquer esperança de sucesso, começava a pertubá-la novamente. Não tinha nascido para ser feliz no amor. Era seu legado. Tão nova e já condenada a esse infortúnio. Também pudera, não era a mais descolada da turma, a mais desejada, tampouco a com grandes dons musicais ou artísticos. Era comum, mediana. Também não era do tipo de arrasar corações. Era bobona e romântica. Das que não fazem sucesso e tampouco chamam atenção. Ok, era exagerada também,um pouco de dramaticidade sempre torna as coisas mais interessantes, não? Mas e as mudanças? Havia realmente mudado?
1 semana e nenhum sinal.
A semana da apresentação dos trabalhos de história estavam próximos. E como tinha esperado por aquele momento! Horas e horas gastas em bibliotecas públicas, acervos e antigas livrarias para deixar a exposição sobre a formação das favelas cariocas o mais verossímil possível. Tudo pronto. Cada grupo era responsável por apresentar seu projeto em uma das 22 salas do colégio, no sábado. Naquele momento até esquecera do menino misterioso, não tinha tempo para bobagens.
Como gostava de apresentar os cartazes, explicar sobre as migrações nordestinas para o Rio, mostrar as fotos das primeiras favelas no Morro da Providência. Todo aquele entusiasmo a entorpecia de uma forma, era outra pessoa. Havia mudado.
Era hora do intervalo e decidira ficar na sala para arrumar os caixotes empilhados que simulavam um desses casebres improvisados que se amontoam nos contornos dos morros cariocas. Mais pessoas chegariam na parte da tarde e queria a melhor nota naquele projeto. Sozinha na sala, notou de repente a presença de mais alguém. Olhou para trás. Era ele. Deslizava por entre um cartaz e outro, lendo as apresentações e observando atentamente cada fotografia em preto-e-branco. O que faria? Já tinha abandonado a idéia de voltar a vê-lo. Aliás, mesmo que o voltasse a ver, tinha certeza que nem notaria sua presença, ele não a conhecia, não sabia quem era aquela menina de cabelos pintados e óculos cor de rosa. Não sabia que gostava de história e tampouco que sua sobremesa favorita era sorvete de creme.
Mas foi surpreendida pelo mesmo sentimento que tivera na primeira vez que o viu na biblioteca. Era algo que obviamente não podia explicar, mas que a deixava nervosa e com o coração pronto a correr uma maratona.
O que faria? Como estragaria tudo dessa vez de uma forma mais criativa? Tinha PhD em quebrar climas românticos, espantar possíveis pretendentes e tornar o primeiro encontro um inferno.
Estava sozinha com o menino dos olhos na sua sala, na sua apresentação, na sua vida. Fugir era uma saída, mas já a experimentara tantas vezes, estava cansada. Havia mudado.
Ajeitou o cabelo e foi em sua direção.
- Gosta de história? – que pergunta idiota, claro que não via cordas que o obrigavam estar ali.
- Ah sim, muito! – respondeu do jeito mais tímido e surpreendido que pudera. Minha presença o incomodava de alguma forma. Talvez fizesse parte do meu mundinho que não sabe lidar com o sexo oposto.
Continuava ali, como que encurralado e também sem saber o que fazer. Peguei-o me fitando duas ou três vezes, mas toda vez que conseguia alcançar o seu olhar, desviava do meu com uma maestria de corredor de fórmula um. De uma coisa compartilhávamos em comum, nenhum dos dois sabia o que fazer, nem o que falar naquele momento. Como sempre minha ansiedade não me permitiu desfrutar do silêncio que intimidava, mas que tinha nos aproximado tanto naquele momento.
- Você estuda aqui? – claro, eu não poderia ser diferente, tinha que bancar a babaca por completo.
Ele riu timidamente. Já tinha percebido meu incrível poder de constranger as pessoas com perguntas idiotas.
- Estudo sim, você também? – ah sim, que ótimo, agora falávamos a mesma língua babacal. Que bonitinho, ou tinha encontrado a minha alma gêmea, ou por certo fizera aquilo para reverter a situação e me tornar menos babaca com minhas perguntas fantásticas!
Dessa vez quem rira fui eu. Respondi com uma certa expressão ardilosa no rosto, queria ver onde esse rio ia desembocar.
- Bom, eu acho que como compartilharmos do mesmo uniforme, faz de nós dois estudantes do mesmo colégio, não é mesmo? – Meu deus, Santa Maricotinha das causas impossíveis, faz eu falar alguma coisa que preste. Sophia, você é inteligente, você é!
- Ah claro, isso é uma boa evidência, ele riu. Mas você não é a menina que sempre passa nas salas chamando os alunos para participarem das passeatas?
Ele tinha me notado antes! Também pudera, meninas que interrompem aulas sem ao menos pedirem permissão aos professores; que entram gritando nas salas de aula; distribuindo folhetos e praticamente obrigando os alunos a se engajarem em passeatas e reuniões políticas, não é espécie comum de se encontrar nos dias de hoje. Tivera eu escutado o conselho da minha vó e entrado para as aulas de violino. Talvez hoje fosse uma menina mais, digamos que, domável.
- Sou eu sim, sou responsável pela parte de comunicação do grêmio. Já deve ter escutado minha voz no rádio do colégio....
- Ah, então é você que tem o prazer de todos os dias anunciar o nosso delicioso cardápio de macarrão com macarrão na hora do intervalo? Sabia que já tinha escutado essa voz antes... respondeu com um tom de voz que ora pendia para o sarcasmo, ora para o total desapontamento.
Tocara o sinal. Alunos e professores começaram a entrar na sala. Não tinha como continuar nossa pseudo-constrangedora-conversa com todo aquele barulho. Nem eu, nem ele sabíamos como continuar.
- Olha, meu grupo deve estar me procurando... Estamos na sala 12, se quiser passar lá depois... dar uma olhada no nosso trabalho, seria bom... E saiu da sala meio na tentativa de fugir daquilo tudo que estava acontecendo, com uma postura que era evidente que estava atordoado. Havia mudado.
continua.....
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