sexta-feira, 3 de setembro de 2010

João e Maria




Sempre fora esquecida.

Os compromissos, as pessoas queridas, as datas importantes, as letras de música...Como era simples esquecer um verbo no curso de inglês, o dentista na quarta feira de manhã, o telefone do menino da noite passada...Como era mesmo o nome dele? E as contas que se amontavam na mesa, pilhas e pilhas de multas que cresciam por uma simples falha de esquecimento... Será que eu desliguei o gás antes de sair de casa? Qual era o nome daquela atriz dos anos 20 que sapatiava belissimamente? Meu deus, a pílula, esqueci de tomar a pílula! E como que num descuido, as deslembranças iam construindo uma parede com buracos e vácuos entre os tijolos...Já tinha desistido de tentar lutar contra esta amnésia aparente, era em vão querer acreditar que poderia guardar lembranças como se guardam tesouros...Estas mais pareciam borboletas a voar, que não tinha porque se querer tentar construir um passado, o seu passado.
Invejava todos aqueles que tinham momentos bons e que tão fácil como acessar um arquivo salvo no HD do laptop, podiam relembrar sempre que algo trazia esses pedaços de memória a tona. Não que não tivesse tais momentos, pelo contrário, o que a entristecia era não poder revivê-los quando o presente era por demais pesado de se levar e o futuro inalcançável de se ver. Uma pessoa sem lembranças é uma pessoa vazia. E como se sentia vazia, de desejos, sentimentos, de si mesma. Por isso, resolvera como que numa última carta a se jogar, tentar a cura para tamanha obscuridade.
Começara primeiramente com os fitoterápicos. Ginko Biloba, gardenal, chá verde,medicina chinesa, acunputura, meditações, dietas a base de vegetais folhosos e ferro...Nada.
Resolveu então métodos mais invasivos, como estimulantes, inibidores da Acetilcolinesterase e até mesmo reposição hormonal. Lançaram um novo tratamento para esclerose múltipla? Lá estava ela a comprar caixas e caixas do produto. Abriram inscrições para seleção de grupos para testes de tratamentos de choque na Universidade de São Paulo? Era a primeira a se inscrever... Ouvira certa vez que escalar os sistemas montanhosos do Himalaya do Sul já tinha surtido efeito para alguns dos que compartilhavam a mesma enfermidade que ela. Fizera o trajeto seis vezes....Nada parecia funcionar....
Foi então que o conheceu...
Como nunca conseguira lembrar dos últimos relacionamentos que tivera, tampouco importava a ela se esse fosse mais um de seus esquecimentos... Já o tinha advertido de seus problemas com lembranças...Para ele, pouco importava...Na verdade o que parecia fazê-lo mais feliz era lembrá-la a cada minuto de como eram felizes, de como sua presença era importante um para o outro, como compartilhar tudo aquilo era como que explorar um caminho ainda inexplorado mas que já deixava rastros para retornarem cada vez que fosse preciso. Como a doença a impedia de planejar, de ter compromissos, de estabelecer metas ou sonhos, estar com ele naquele momento a fazia tão bem, era tão leve de se sentir...
Eram felizes, da sua maneira, mas eram.
Acordou numa manhã, com uma sensação de prenchimento tão grande.
Já pronta a compartilhar com aquele que parecia ser a fonte de tamanha energia que pulsava, olhou para o lado da cama e não o viu. O que teria sido aquilo tudo? Mais uma de suas fantasias? Como algo tão real poderia não existir? Ele realmente não existira? Mais era impossível algo que estivera sempre tão presente, tão próximo ser simplesmente uma alegoria de sua cabeça. Não era possível. Não podia ser. O vazio que sempre a acompanhou durante todos esses anos agora pulsava de outra forma dentro de si. Não como um vácuo que esperava ser prenchido com nomes,quaiquer que fossem, mas um espaço que esperava seu dono retornar.
Tinha agora nome.
Saudade.
A cura para aquilo que tanto a molestava comecara a aparecer. De uma forma dolorosa, mas o que sempre a incomodou por nunca poder sentir, estava agora lá. E como doía poder sentir. Como machucava cada vazio que agora poderia ser prenchido com uma lembrança. Era este o preço a se pagar. Não podia se dar o direito de escolher não sentir, não lembrar, não ter um passado, se a cada minuto os novos moradores do seu interior a pertubavam com palavras, sentidos, memórias.
Estava curada.
Queria agora encontrar aquele que a tinha restabelecido,mas sabia que era em vão. Diferente das suas recordações, ele não voltaria. Poderia agora viver ao menos com o presente que tinha deixado para ela. Um passado.

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